Blitz (Portugal), March 18, 1986

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Blitz (Portugal)

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O dia da coroação

Elvis Costello — The King Of America

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   Manuel Falcão

A primeira audição, ainda numa cassette, a coisa parecia prometedora. Um amigo de passagem por Londres trazia dias depois o disco e ele ultrapassava todas as expectativas: «King Of América», de Elvis Costello, é o mais entusiasmante álbum desde há muito tempo e deixa a milhas de distáncia qualquer concorrência. É um nunca acabar de canções cheias de intenções, de histórias soberbamente contadas, de preciosidades melódicas (simples, espantosamente simples). Há muito tempo que não me apetecia dizer isto mas a verdade é para se usar «King Of América» não é um disco, é uma aventura.

ANTES de mais considerações, convirá fazer notar que Elvis Costello passou-se voluntariamente para segundo plano neste registo, fazendo ressaltar um novo personagem saído da sua imaginação: o grande e inesperado Declan Patrick Aloysius MacManus, meio actual de dar corpo ás ideias de Costello. É com esse nome que ele assina as canções no disco, é assim que ele aparece a dar entrevistas. Por outro lado, os Attractions, durante muito tempo a banda de Costello, são aqui quase completamente substituídos pelos Confederates. A capa do disco mostra Costello de barba rala e óculos redondos, com uma coroa na cabeça e com ar muito compenetrado. A imagem consegue ser simultaneamente ridícula e diabolicamente seria.

Durante quase uma dúzia de brilhantes bocados de música, que se ligam uns com os outros e que vão contando surpreendentes histórias de uma terra chamada América. Declan MacManus vai recitando episódios, criticas, desgostos, paradoxos, romances de coca-cola e paixões de «hamburger». É um mundo à parte, de uma frescura espantosa. Muitas vezes fortemente reflexivo, este é um disco íntimo como poucos. Durante quase dois anos (mais, no mercado nacional), Costello tinha estado ausente das prateleiras das novidades discográficas. Agora aqui está ele de volta para ensinar uma lição sobre como se deve fazer um disco. É certo que não existem valores universais, é certo que todos os dias surge uma novidade - mas é também verdade que as obras-primas são raras. E, a verdade, é que Elvis Costeilo, ou o tal Declan MacManus por ele, acaba de oferecer ao mundo urna dessas poucas obras-primas.

Os boatos e as realidades

Nos últimos meses, segundo relatos da Imprensa especializada britãnica, haviam surgido em Londres as mais desencontradas noticias sobre Costello: uns davam-no como louco asilado, outros como de todo afastado das lides. Parecia ponto assente que dali nada haveria a esperar nos próximos tempos. Não foi Elvis Costello quem de facto apareceu. Ele mandou em seu nome o tal de Declan, com um disco debaixo da mão que faria a inveja de quase todos os que por agora vão fazendo música audível neste planeta.

«Já não tenho qualquer posição na pop hoje em dia, demiti-me do meu posto. Não estou em competição com ninguém. Os outros são o que são e eu estou fora disso, sou o que sou. E ao pé de mim não está ninguém. Comparado com as coisas que se fazem por ai hoje em dia, «King Of America» é um disco punk» — afirmava recentemente Costello (ou seria MacManus?) ao «New Musical Express».

Costello tinha no activo quase uma dúzia de discos, entre os quais preciosidades como «This Year's Model» ou o belo «Imperial Bedroom» ou ainda «Almost Blue». Mas este «King Of America» é outra coisa, algo de diferente, nalguns momentos (frequentes) quase único, inédito. Numa altura em que parecia assente que nada mais restava que copiar outras coisas já feitas e que até mesmo os mais ousados (como os Jesus And Mary Chain) se limitavam a fazer uma versão moderna de glórias falecidas, este senhor — jã nem sei por qual nome o hei-de chamar — aparece com uma coisa que não estava ouvida.

Aparelhos auditivos pouco sensíveis e maltratados pelos subprodutos mais vulgares do mercado discográfico poderão achar, numa primeira audição, que «King Of America» é um registo apagado, monótono e nada entusiasmaste. Mas se conseguirem limpar a cabeça dos sons feitos e escutarem outra vez as coisas, compreenderão como é útil, para bem da humanidade, que surjam mais discos destes em vez de mais discos de, por exemplo, os Dire Straits ou, noutro género, os U2. A diferença entre este disco e os outros é a que vai das coisas arranjadinhas para as coisas arranjadas, a que vai das coisas bonitinhas para as coisas bonitas, a que vai das coisas simpáticas para as coisas rudes, mas perfeitas. Costello e o seu alter-ego MacManus atingiram aquele estado de ordenamento perfeito e inteiramente simples que só é encontrado na natureza e nos que nela se inspiram.

Do ponto de vista da execução instrumental, este disco é um autêntico manual e, para o fazer, o autor juntou um bom número dos mais notáveis instrumentistas americanos que nasceram a tocar no surgimento do rock e que tocaram ao lado de nomes como Rick Nelson e do próprio Elvis Costello. Este notável grupo de músicos recebeu aqui a designaçao de Confederates. Não há nada de espampanante, apenas sóbria e eficaz execução — mas cheia de sentimento e de um palpável vigor. Os Attractions, pelo seu lado, surgem apenas num tema, já no segundo lado.

Neste reino há de tudo um pouco

Ao longo das faixas deste LP (que lá fora foi editado em «compact-disc» e que para os possuidores de aparelhagem compatível é inegavelmente uma compra indispensavel), abordase de tudo um pouco, desde o folk irlandês até aos blues, passando pelo country, a soul, o cajun e aqueles outros sons da América tão atraentes como o zydeco e o tex mex. Mas, não façam falsas ideias — este nâó é um disco folk, longe disso. Vai la saquear ideias, mas com o fito de fazer o definitivo disco pop,

Ao contrário do que acontecia em discos anteriores no tocante ás palavras cantadas, Costello deixou de lado o tom elaborado, e às vezes mesmo barroco, que usou em tempos e é agora tão frontal e directo que por vezes surpreende. Ele diz o que quer de forma simples, perceptível e crua.

O LP tem dois rockzinhos deliciosos, nas segundas faixas de ambas as faces, que sao «Lovable. e «Eisenhower Blues», uma declaraçao de principio sobre os males de hoje com raízes no passado. «Lovables é escrito de parceria com Cait O'Riordan dos Pogues. O LP começa de forma espampanante com «Brilliant Mistake», um tema que estabelece logo o tom geral que será usado dal para a frente e que fala sobre a América referindo a ideia de que nunca um pais fundado com base em tão elevados princípios se deu ao trabalho de não os cumprir. «Our Little Angel» surge depois como uma história de engate. Vem a seguir a única cançâo que nao é de Costello, uma versão do velho «Don't Let Me Be Misunderstood», dos Animals, numa interpretação irresistivel. «Glitter Gulch» conta as aventuras de vida numa sociedade feita de coisas para deitar fora e »Indoor Fireworks» e o clímax contido nas espiras de vinil — é a história viva de uma paixão. É talvez a mais pessoal — e também a mais triste —canção de todo o álbum. «Little Palaces», com belas vocalizações, bandolim pelo meio a evocar a beleza das velhas construções sólidas e a condenar a sua destruição por edifícios modernaços onde as pessoas não se podem sentir bem. É uma canção que vai ser pomo de polêmica — Costello larga aquela pose habitual de proteger os trabalhadores nas baladas e critica a brutalidade, a incultura, a violência e a estupidez dos que, podendo fugir a tudo isso, se mantêm nos mesmos círculos. O lado 1 é encerrado com «I'll Wear It Proudly», quase um hino, um poema épico de amor e de confissão. É um dos momentos altos do disco.

O final da aventura

No lado 2 o inicio é «American Without Tears», peça gémea de «Brilliant Mistake» que, como o nome indica, é um elogio aos americanos e sobretudo uma critica aos que reduzem os Estados Unidos a um presidente saído de filmes da série B e a uma política externa perigosa. Em «Poisoned Rose» aparece o baixista de jazz Ray Brown e o tom é o dos blues. É mais uma canção de amor.

Seguem-se «The Big Light» e «Jack Of All Parades», a primeira canção sobro noitadas e copos e a segunda uma canção de amor. «Suit Of The Lights» é a única canção do LP em que tocam os Attractions. O álbum termina com «Sleep Of The Just», uma coisa que parece a intercepção dos Pogues com Madonna e que se destina a louvar os que têm princípios morais superiores.

Quase uma hora depois de se ter começado a tocar chega-se ao fim deste LP com a certeza de que se está perante um daqueles discos destinado a sor companhia constante. Num tempo de futilidades, Costelo-MacManus fala de coisas sérias, louva os bons princípios, levanta-se em defesa dos justos e critica os que usam a pobreza como argumento para a prática de actos brutais. É uma posição arriscada mas a verdade é que este disco è um risco do princípio ao fim. Um risco que valeu a pena correr.

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Blitz, No. 72, March 18, 1986


Manuel Falcão profiles Elvis Costello.

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